As relações entre tributos e crime já se entrelaçam de longas datas. A garantia da arrecadação estatal desde há muito é uma preocupação dos governantes de plantão, antes mesmo da instalação do Estado Moderno em nossa recente história.
Hoje, no Brasil, ao nosso ver, todo o sistema punitivo ora desenhado pelo legislador há de ser revisto sob o filtro da sabedoria e do bom senso, para que se ateste quais normas vigentes e interpretações predominantes encontram justificativa, merecendo acolhida, e quais não gozam da mesma sorte.
O advogado criminalista, Dr. Marco Meirelles Maciel afirma com absoluta certeza que podemos afirmar que nenhuma norma privativa de liberdade, deverá coexistir ou mesmo prevalecer, sobre dívida tributária até não esgotados todos os meios de defesa administrativa, e o eventual trânsito em julgado, a posteriori, de ação penal correlata.
Decerto, a confusão operada entre os interesses arrecadatórios do Estado Brasileiro, em sua ânsia de fazer frente às carências momentâneas de caixa, e aqueles propriamente político-criminais, tem promovido a identificação do bem jurídico protegido no campo fiscal com o próprio crédito tributário.
Ao mesmo tempo em que se criminaliza a conduta indiscriminadamente, à critério do órgão que detém a legitimidade ativa a propor, quer seja o Ministério Público, o faz invariavelmente sem conhecimento específico de causa e levianamente, extrapolando suas funções constitucionais, o que efetivamente faz com que a pena não seja, afinal, aplicada, concentrando-se o sistema no efeito simbólico da sanção abstratamente cominada, e na destruição de reputações através dos holofotes da mídia.
Ao nosso prisma, tudo decorre ao que se refere ao momento da “consumação” dos crimes enquadrados e a sua relação com a atividade administrativa de lançamento do crédito tributário.
Sem o prévio exaurimento da instância administrativa, e a independência da ação penal correlata, pedidos de prisão arbitrariamente e indiscriminadamente solicitados pelo Ministério Público, e infelizmente por vezes concedidos pela Justiça, fere com certeza princípios básicos das garantias constitucionais do contraditório e do amplo direito de defesa.
Ainda que tenhamos o alento da Sumula Vinculante n.º 24 do STF , com frequência a falta do esgotamento da via administrativa para discussão do crédito, como condição objetiva de possibilidade punitiva, à eventual configuração da materialidade de crimes efetivamente cometidos dentro de suas tipificações estabelecidas, o que deveria ser uma condicional e causa essencial à propositura de ação penal. ( CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 15 ed. revista e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2008. / TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de processo penal comentado. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2004. v.1 /MUCCIO, Hidejalma. Da denúncia: teoria e prática. 1 ed. Bauru: Edipro, 2001.)
Há com certeza absoluta portanto, a necessidade de se subordinar a possível tipicidade penal de qualquer crime tributário, ao exaurimento da fase administrativa, e à sua prévia decisão irrecorrível. (Habeas Corpus 399.109 – SC/STJ. Ministra Mª Thereza de Assis Moura, Ministros Jorge Mussi e Sebastião Reis Júnior – (Necessário exaurimento administrativo para efetiva tipificação de crime tributário.) / STJ – HC 277970-PR, AgRg no AREsp 552151-SP (Sonegação Fiscal – Ação Anulatória Cível – Depósito Integral do Crédito Tributário – Suspensão do Processo Penal – Cabimento) / STJ – AgRg no AgRg no REsp 1332292-RS (Descaminho – Decisão Administrativa Favorável ao Contribuinte – Repercussão na Tipificação do Delito – Questão Prejudicial)
Temos de reconhecer que a doutrina atualmente se divide entre os defensores de conceitos críticos ao sistema, como nós, dispostos a limitar a liberdade do legislador em matéria penal, e aqueles apegados a aplicação da lei penal existente de maneira indiscriminada, em desprestigio ao bem jurídico maior do cidadão, quer seja, sua liberdade, que deve prevalecer sobre qualquer pretensão do Estado em receber um possível tributo. O Estado de rever seu posicionamento, deixando de interpretar qualquer eventual erro material por presunção, ou mesmo uma eventual omissão por mero descuido ou imperícia, como sendo ilícito penal perpetrado de má fé presumível, mediante fraude ou dolo proposital.
Nos dias atuais há uma discussão na justiça sobre a questão de ser crime o ato de não pagar ICMS apurado e devidamente informado ao Fisco.
O modo de apuração e pagamento de ICMS, dito de forma simples, é realizado pela contabilidade e ou pelo financeiro da empresa. Isto é, a contabilidade apura e informa à Secretaria de Fazenda do ente federativo o montante apurado, através do LFE – Livro Fiscal Eletrônico. O financeiro da empresa é responsável pelo preenchimento do documento de arrecadação (DAR, como é o caso do DF) e pelo efetivo pagamento na rede bancária credenciada pelo Governo. Como se pode ver, até aqui, não se tem a atuação direta e pessoal do dono da empresa.
Aliás, a grande maioria das empresas não têm contabilidade própria (interna). Preferem contratar os serviços contábeis de empresas especializadas em contabilidade tributária, dada a complexidade de nosso modelo de arrecadação, também chamado de sistema tributário nacional. Todavia não tem nada de sistémico. É extremamente burocrático e confuso.
Voltando à questão da arrecadação do ICMS, o lançamento do imposto é feito pelo contribuinte, ao encaminhar o LFE ou a GIA, contendo a informação do montante apurado. O Fisco Estadual ou Distrital tem o prazo de cinco anos para homologar ou rever o lançamento feito pelo contribuinte.
A revisão se dá por dever de ofício do Fisco. O art. 149 do Código Tributário Nacional impõe a revisão do lançamento quando o Fisco, quando se comprove erro, inexatidão. Entretanto, o Ministério Público não respeita essa determinação legal e tenta tratar o não pagamento de imposto declarado como sendo crime de sonegação fiscal. Mas não é crime! Para que o não pagamento do ICMS, conforme exposto há que haver a previsão legal de que o não recolhi recolhimento seja punível com pena de prisão, o que até então não existe.
O não pagamento de ICMS informado ao Fisco pode decorrer de uma série de motivos desconhecidos do dono da empresa, alheios à sua vontade. Conforme afirmamos linhas acima, quase sempre a apuração e a arrecadação de ICMS não dependem de ordem do dono da empresa. Na maioria dos casos, o dono da empresa não é informado de quanto foi apurado e quanto deve ser arrecadado/pago.
Como dissemos acima, as empresas têm contabilidade e setor financeiro que não recebem ordem pessoal e direta do seu dono. Demais disso, a falibilidade é da natureza humana. Inúmeras vezes ocorre de a empresa ser informada de que recolheu imposto a maior ou indevidamente e, por isso, tem direito a fazer compensação ou pedir a devolução do que pagou.
Se a atividade humana fosse dotada de infalibilidade, o Código Tributário Nacional não teria a previsão de revisão do lançamento do tributo, seja para cobrar a diferença, seja para repetir o indébito. A lei é sábia e sua interpretação assim também deve ser.
Não bastasse tanta clareza, o Tribunal de Justiça de São Paulo, ao analisar denúncia oferecida pelo Ministério Público, decidiu que o simples fato de apurar o ICMS e informar à Secretaria de Fazenda, sem fazer o pagamento, constitui crime de sonegação fiscal. Trata-se de manifesto claramente equivocado. O crime de sonegação fiscal não admite a modalidade culposa. É dizer, para haver crime de sonegação fiscal é imprescindível a figura do dolo, a vontade livre e consciente de não pagar o ICMS. Assim, deixar de pagar ICMS declarado ao Fisco não é crime de sonegação fiscal, e este posicionamento é majoritário entre os tributaristas e da melhor doutrina, como o Dr. Paulo Rodrigues da Silva, procurador da Fazenda Nacional aposentado.
Aliado às premissas já apontadas pelos advogados Marco Meirelles Maciel e Paulo Rodrigues da Silva, ambos do escritório Tolentino & Moro Frigi Advogados Associados faz-se necessário ainda breves apontamentos referentes à modalidade de constituição do crédito tributário por lançamento e a obrigatoriedade do Estado de verificar a sua veracidade.
Destaca-se, que enquanto houver qualquer questionamento quanto ao suposto crédito tributário este jamais poderá ou deverá ser apontado como valor de fato devido.
A prova de que primeiro há que ter o exaurimento da fase administrativa para somente após haver o ilícito de possível ação penal é a Súmula Vinculante 24 do STF já indicada.
Inicialmente há que se traçar o conceito de lançamento, pois o crédito tributário constitui-se com o lançamento, podendo ser por declaração, de ofício ou direto, por homologação ou autolançamento, que tais formas serão abordadas em seguida. No coso do ICMS, este ocorre por declaração efetivada pelo contribuinte.
São vários os aspectos que envolvem o lançamento tributário, quer quanto as suas modalidades, quer em relação aos demais institutos que gravitam em torno dele. Vejamos a previsão contida no art. 142 do CTN – Código Tributário Nacional, in verbis:
Art. 142. Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.
Parágrafo único. A atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional.
Dos enunciados estudados, só podemos concluir que o os conceitos das diferentes formas de constituição do crédito tributários são linhas mestras que o Estado tomará como procedimento na constituição do crédito tributário.
Em qualquer uma das modalidades de constituição do crédito tributário a serem tratadas, o Estado em momento algum assume menos ou nenhuma responsabilidade. Tem o Estado o dever de verificar os valores lançados, verificar o fato ocorrido, é o que determinar o art. 142 do CTN.
Para Luciano Amaro, lançamento:
É o ato administrativo de aplicação da norma tributária material, que se traduz na declaração da existência e quantitativo da prestação tributária e na sua conseqüente exigência. O conceito legal de lançamento é dado pelo art. 142, quando afirma: Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo o caso, propor a aplicação da penalidade cabível.
Sacha Calmon Navarro Coêlho, em análise ao art. 142 do CTN, leciona com simplicidade e ao mesmo tempo com muita clareza:
Estamos acordes em que a maioria dos impostos são calculados – por força de lei – pelos próprios contribuintes e pagos sem prévio exame da autoridade administrativa. Sabemos, igualmente, que a Administração fiscal jamais homologa expressamente esta atividade do contribuinte, deixando em aberto o prazo que possui para rever o pagamento, de modo que possa, durante o período, fiscalizar o contribuinte quantas vezes quiser, concordando ou discordando do seu proceder. Quando discorda, promove lançamentos ex officio para exigir os créditos recolhidos a menor ou simplesmente não pagos. Entretanto, o CTN fincou o pé em duas posições: a) seja qual for o tributo, tem que haver o lançamento, atividade privativa da autoridade administrativa; b) nos casos em o contribuinte faz o pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa, dá-se um prazo de cinco anos para a Fazenda homologar o pagamento expressa ou tacitamente. Dá-se, em seguida ao silêncio ou inação da Fazenda durante este tempo, o caráter de homologação tácita (o caráter de autolançamento homologado). A crítica feita por Paulo de Barros Carvalho é definitiva: a conhecida figura do lançamento é um ato administrativo de natureza confirmatória, em que o agente público, verificado o exato implemento das prestações tributárias de determinado contribuinte, declara, de modo expresso, que obrigações houve, mas que se encontram devidamente quitadas até aquela data, na estrita consonância dos termos da lei. Não é preciso despender muita energia mental para notar que a natureza do ato homologatório difere do lançamento tributário. Enquanto aquele primeiro anuncia a extinção da obrigação, ocorrência do fato jurídico. Um certifica a quitação, outro certifica a dívida. Transportando a dualidade para outro setor, no bojo de uma analogia, poderíamos dizer que o lançamento é a certidão de nascimento da obrigação tributária, ao passo que a homologação é a certidão de óbito.
Nas palavras de Misabel Abreu Machado Derzi, quanto à interpretação do art. 142 do CTN, ensina:
O lançamento é um ato jurídico-administrativo e é assim definido pela maioria dos doutrinadores. Lembra Souto Maior Borges, em brilhante explicação do sentido legal de lançamento, que a palavra, no texto do Código, é polissêmica, suportando pelo menos duas acepções básicas: a) de procedimento administrativo, como consignado no art. 142 ou nos §§ 1º e 2º do art. 144, entendido como tal “o caminho juridicamente condicionado por meio da qual certa manifestação jurídica de plano superior – a legislação – produz manifestação jurídica de plano inferior – o ato administrativo do lançamento”; b) a de produto jurídico do procedimento (ou ato): a norma individual e concreta, sentido que se depreende do art. 150 ou do caput do art. 144. Do ponto de vista teórico, devemos fazer opção, pois o ato administrativo e procedimento são fenômenos distintos. Assim. Como na teoria do processo civil não há de se confundir o processo com a sentença que dele resulta, também no direito tributário é necessário estabelecer nítida distinção entre procedimento administrativo e lançamento, eliminando-se a vaguidade e equivocidade.
Quanto ao art. 142, o STJ posiciona-se da seguinte forma:
Ementa: I. O fato gerador faz nascer a obrigação tributária, que se aperfeiçoa com o lançamento, ato pelo qual se constitui o crédito correspondente à obrigação (arts. 113 e 142 do CTN). ….” (STJ. REsp 332693/SP. Rel.: Min. Eliana Calmon. 2ª Turma. Decisão: 03/09/02. DJ de 04/11/02, p. 181.).
Ementa: I. O crédito tributário só se constitui pelo lançamento.
II. Nas hipóteses de autolançamento, somente após o ato de homologação pelo Fisco, é que se constitui o crédito tributário, tornando-se exigível a obrigação pelo su¬jeito passivo (art. 150 c/c 142 do CTN). ….” (STJ. REsp 412365/SC. Rel.: Min. Eliana Calmon. 2ª Turma. Decisão: 13/08/02. DJ de 09/09/02, p. 218.).
Nas palavras de Marcos Vinícius Neder, no tocante ao lançamento, em interpretação ao art. 142 e parágrafo único do CTN, segue sua lição:
A autoridade não possui o livre critério de efetuar o lançamento ou deixar de fazer. O parágrafo único do art. 142 do CTN impõe o caráter expressamente vinculado e obrigatório á atividade do lançamento, sob pena de responsabilidade funcional do agente público. A atividade do lançamento é, assim, conforme determina o parágrafo único deste artigo, vinculada e obrigatória. Uma vez verificado pela administração o nascimento do vínculo pessoal entre o sujeito ativo e o sujeito passivo (nascimento da obrigação tributária, debitum, schuld, relação de débito), a administração estará obrigada a efetuar o lançamento. A hipótese de incidência da atividade administrativa será assim a ocorrência do fato imponível previsto na hipótese de incidência da lei tributária.
Em suma, o ente federativo tem a obrigação de proceder os ditames da art. 142 do CTN e em havendo qualquer questionamento sobre o possível crédito, este jamais estará definitivamente constituído, portanto impedindo qualquer outra medida punitiva.
O núcleo elementar do crime de sonegação consiste na omissão do recolhimento de tributo, e não somente a falta de pagamento do valor regularmente declarado ao fisco conforme tenta de forma sem preceito legal o Ministério Público em vários casos.
Vemos o que nos orienta Kiyoshi Harada:
O crime sob comento caracteriza-se, dessa forma, por meio de uma série de condutas: descontrar ou cobrar o valor do tributo de um terceiro em um primeiro momento. Ao despois, omitir-se no recolhimento do tributo descontado ou cobrado.
Nos casos de impostos indiretos, como o ICMS, em que o valor do imposto integra o preço do produto (mercadoria) ou do serviço, jamais caberá a imputação de pena de prisão para o comerciante que regulamente tenha declarado ao fisco e não tenha recolhido, pois não se trata de sonegação fiscal.
Ressalta-se que não há norma alguma que estabeleça que o devedor de ICMS, que regularmente tenha declarado ao fisco e possa ser preso por não ter recolhido.
Os advogados autores, do escritório Tolentino & Moro Frigi Advogados Associados, recomendam que os contribuintes (empresas) que tenham omissões ou ausências de declarações procedam o seu devido envio ao fisco, pois não poderão serem presos por estarem em débito, mas poderão se forem considerados sonegadores.
Autores
Críticas, Sugestões ou Elogios
MARCO MEIRELLES MACIEL
marco@tolentinomorofrigi.adv.br
PAULO REDRIGUES DA SILVA
paulo@tolentinomorofrigi.adv.br
NATAL MORO FRIGI
natalfrigi@tolentinomorofrigi.adv.br
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